2.1. Arte e técnica no contexto pós-medial
No ensaio de Walter Benjamin, A obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1) (1992), o autor referia-se ao surgimento de novas potencialidades artísticas, principalmente numa dimensão política, como resultado da reprodutibilidade técnica das sociedades.
Benjamin introduz a noção de que a tecnologia se afirmou não só na realidade social, como também, na realidade artística o que, segundo o autor, acabou por afectar a experiência e a recepção da obra de arte. na perspectiva de W. Benjamin, a introdução da técnica fez com que a obra de arte se destituísse de singularidade e unicidade, ‘conquistada’ em tempo anteriores (como no caso da introdução da fotografia e o aparecimento do cinema) e por isso daquilo que o autor designava por aura da obra de arte, dizendo:
‘o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. (...) essa decadência assenta em duas circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida actual. ou seja: ‘aproximar’ as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução. Cada dia se torna mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução’. (BENJAMIN, 1992, pp. 79-81)
O recuo a este ensaio de W. Benjamin que aqui é tido em conta, serve como breve referência e ponto de partida para a análise que se pretende fazer em torno das relações e cruzamentos entre arte e tecnologia. O seu pensamento constrói uma visão positiva a partir da importância da mediação tecnológica para a criação e produção artística, fruto da massificação cultural, capaz de despertar na arte novas formas de produção e percepção. segundo a perspectiva de Fernando José Pereira no texto Arte e Experimentação - A Ideia de Obsolescência Frente ao Presente Tecnológico, W. Benjamin está:
‘antes de mais, a revelar uma compreensão das novas relações estabelecidas pelo sujeito com o mundo, agora tecnológico, que o rodeia: a necessária consciência de que a experiência está a falhar ao ser condicionada pelo tempo, pelo instante’. (PEREIRA, 2006, p. 458)
Não obstante, a visão de Benjamin corresponde a um tempo que já não é o nosso mas que não deixa de ser uma visão moderna do período artístico que se fazia sentir, e um indício influente na pós-modernidade. Numa visão crítica e cultural sobre a arte contemporânea, Hal Foster, a partir da problematização da noção de ‘fim da arte’ na era moderna introduzida por Danto, refere-se não de forma directa ao fim das artes ‘tradicionais’ como a pintura e a escultura, mas antes à ‘inovação formal e significado histórico desses media’ (2). (FOSTER, 2002, p. 123)
No ensaio Design and Crime (2002), se por um lado, Foster recordava o ‘fim da arte’ de Danto, no sentido da abertura para uma arte ‘pluralista’ (3) baseada em novas práticas artísticas, a partir de uma multi-culturalidade do campo; por outro, havia ainda, a noção de uma atitude pós-estruturalista assente na importância da representação das práticas sociais e, ainda, na importância da ‘prática da imagem’.
Mas o que vem depois da arte? (4) Foi de forma semelhante que H. Foster colocou a questão. Não pretendendo discordar com estas visões Foster fomenta a ’resposta’ em torno daquilo que o ‘fim da arte’ pode despoletar no âmbito artístico e segundo uma visão contemporânea, tendo em conta que ‘(...) vivemos na emergência não somente da pintura e escultura modernista mas nas desconstruções pós-modernistas dessas formas, na emergência não só pré-guerra das vanguardas mas também da ocorrência do período pós-guerra das neo-vanguardas.’(5) (FOSTER, 2002, p. 125)
Assim, a questão levantada relativamente à arte pós-moderna iria ser ‘trabalhada’ quer a nível crítico (apontando para as possibilidades críticas no presente e as alternativas) como artístico no evocar de práticas direccionadas para uma ‘semi-autonomia do género ou do medium mas num sentido reflexivo que abre em discussões sociais’: um mundo fechado que abre para o mundo (6) (FOSTER, 2002, p. 130). Também os artistas viram de forma positiva, por um lado, o avanço tecnológico e por outro, o fim das artes ‘tradicionais’ como ponto de ‘viragem’ para uma prática expansiva, na subversão das técnicas tradicionais e dos próprios espaços, isto é, quer ao nível das transformações formais como das temporais da produção artística.
Pois estas ideias não se afastam muito do pensamento crítico de Rosalind Krauss. Com uma visão sobre a arte conceptual, R. Krauss vê o período pós-moderno não como o ‘fim da arte’ mas antes, como fim das artes individuais como medium específico. A possibilidade da mediação através da diversidade de meios pode-se constituir na perspectiva da autora, como carácter único. no ensaio A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition, a partir do pensamento de Clement Greenberg, R. Krauss amplia a noção modernista das formas da ‘arte pura’ (no que respeita à pintura e à escultura) para as formas e materiais/ conteúdos da arte na era do pós-medium, no sentido de alcançar a autonomia artística nas mais variadas formas e lugares. a autora diz:
‘A arte conceptual viu-se a si própria a segurar uma mais alta pureza da Arte, para que no curso pelos canais da distribuição de mercadorias ela não só adoptasse qualquer forma que precisasse mas, por uma espécie de defesa homeopática, evitaria os efeitos do próprio mercado.’ (7) (KRAUSS, 2000, p. 11)
Mas pensemos ainda, na noção de ‘escultura no campo expandido’(1979) introduzida pela autora. Inicialmente não muito bem compreendida, esta ‘novidade’ artística definia-se já numa relação intrínseca de variados meios, para os quais a arte reclamava uma autonomia não só do trabalho artístico mas fundamentalmente dos meios para o resultado ‘final’. Desta forma, já não havia uma separação de meios na qual se privilegiasse a ‘pureza’ específica do medium, mas antes uma Arte (geral) que envolvesse um conjunto de práticas, segundo uma relação lógica entre as mais variadas possibilidades, numa atitude contra a separação da vida e da arte, do artista e do público/espectador.
Na perspectiva de R. Krauss, se Joseph Kosuth foi provavelmente o artista que melhor se referiu à noção da arte do período pós-moderno, ao dizer que a especificidade dos meios começam a ‘funcionar’ em conjunto, numa unidade para a definição de uma Arte mais genérica -art-in-general (FOSTER, 2002, p.10); então, talvez richard serra tenha sido o artista que visualmente melhor reformulou a questão do medium estético ao ter a ‘audácia’ de alterar de forma perspicaz os próprios suportes da arte. Casting (1969-91) será possivelmente um dos trabalhos do artista que define claramente a autonomia do medium e a articulação das tipologias.
O trabalho de Richard Serra ao não se enquadrar mais num determinado formato e, por isso, numa dimensão limitada, transfere-se, numa espécie de processo de rotação, para outros suportes ou espaços: no caso de Casting, para o chão. também este é um processo de redefinição da forma e naquilo que Rosalind Krauss chama de: ‘(...) articulação dos vectores/ direcções que conectam os objectos e as disciplinas.’ (KRAUSS, 2000, p. 26)
Neste sentido, tanto o trabalho de Serra como o panorama geral artístico, procuram da melhor forma as possibilidades expressivas na articulação do ‘campo como o próprio medium’ (8) para construir uma arte no sentido único. (KRAUSS, 2000, p. 26) O medium afirma-se heterogéneo, não só como suporte mas também conteúdo, inserido numa nova lógica, naquilo que R. Krauss considera de especificidade diferencial: uma espécie de sentido único ao agrupar todas as possibilidades, mas diferencial na questão matérica e física do suporte.
Ambos os autores parecem negar e fazer frente à comercialização dirigindo o seu discurso de tom ‘comercial’ para uma subversão desse uso através do trabalho com os próprios sistemas.
Enquanto que Krauss propõem uma especificidade diferencial, na qual, no ensaio a autora apresenta artistas como richard serra e Marcel Broodthaers; Hal Foster, apresenta quatro especificidades/possibilidades: espectral, assincrónico, traumático, incongruente. (9) (FOSTER, 2002, p. 130) Rachel Whiteread e Stan Douglas são apontados, pelo crítico, como exemplos importantes para o entendimento dos novos suportes no panorama artístico contemporâneo, no qual essencialmente o tempo ganha importante sentido.
Assim, a importância da mediação tecnológica na contemporaneidade abre a possibilidade do medium para a questão temporal da própria tecnologia, introduzida claramente por Fernando José Pereira quando no início se referia ao ensaio de Benjamin, sobre a experiência artística ainda condicionada pelo tempo e instante. ora se a arte faz parte da vida, então não pode estar imune à tecnologia e aos seus avanços. Por isso, não será de todo inútil pensar na forma como hoje a própria realidade social e tecnológica se nos apresenta. Será que conseguimos ‘despir-nos’ dos interesses e desejos consumistas da novidade em favor de um entendimento do valor simbólico do ‘velho’ e por isso, do valor simbólico do tempo? Será que realmente sabemos o que queremos neste exacto momento?
Sabemos que, se pudéssemos, compraríamos hoje, por exemplo, o último modelo de telemóvel, com todas e mais algumas funcionalidades comunicativas, úteis ou não às nossas necessidades; se pudéssemos teríamos hoje o último modelo daquele computador que é para nós o mais capacitado, moderno e mais sedutor. Mas se esperássemos mais um par de meses, ou até menos, talvez pudéssemos comprar o que realmente seria o telemóvel actual e funcionalmente mais forte e mais moderno, o modelo mas avançado e mais rápido, ou seja, literalmente mais eficaz, e assim sucessivamente.
Nesta lógica empírica, o novo e o presente ou, o actual, parecem fazer parte de um passado- recente (mas que não deixa de ter passado). e hoje é nesta realidade que nos inserimos, num tempo que parece estar cada vez mais comprimido como resultado da afirmação do avanço tecnológico: por um lado, pela novidade que oferece a qualquer momento e, por outro, pela desactualização a todo o minuto causado por este último, à qual segundo F.J. Pereira: ‘(...) é interessante constatar a rápida sucessão de aparelhos e aparelhamentos utilizados ao longo dos últimos anos e a velocidade com que envelhecem aos olhos das novas tecnologias’ (PEREIRA, 2006, p. 460) que na continuidade desta lógica em torno da tecnologia cita ainda Pierre-Henry Jeudy:
‘a rapidez de produção de objectos de comunicação leva a esse efeito de obsolescência que coloca o objecto fora do circuito e lhe restitui o seu mistério. assim se passa com os primeiros televisores ou com as primeiras calculadoras toda essa corte de «novos» objectos, já obsoletos, cuja função consistia em substituir o objecto pela imagem, recupera o seu estatuto de objecto graças à perda da sua utilidade.’ (cit por PEREIRA, 1995, p. 460)
A condição de obsolescência tecnológica, ou do objecto obsoleto, é introduzida de forma pertinente para a compreensão da questão temporal inerente aos processos tecnológicos que acabam por transformar o próprio objecto técnico enquanto meio funcional e, por isso operativo, em objecto destituído de poder técnico para passar a ter uma carga meramente simbólica. Neste sentido é importante pensar que: ‘(...) a passagem à condição de obsoleto, por parte do aparelho, possibilita a recuperação do seu estatuto objectual com valor acrescentado pela aura do tempo (...)’. (PEREIRA, 2006, p. 462)
Parece mais claro a formação de um novo relacionamento entre o território da arte e a técnica, encaminhando o interesse artístico na obsolescência técnica para a autonomia estética do objecto. Também R. Krauss refere-se à obsolescência como capaz de conferir ao objecto potencial simbólico e formal, na produção artística contemporânea. Exemplo disso é o trabalho do artista Broodthaers ao coleccionar objectos ‘desactualizados’ (10) (KRAUSS, 2000) e destituídos das funções originais, numa atitude artística contra o consumo. Reclamando essa mesma autonomia da experiência estética evocada do ‘vir depois da 'arte’, Hal Foster propõe o conceito de ‘mnemónico’(11) (FOSTER, 2002) como forma de recuperar o material passado, da prática de todos os dias, ao passar a privilegiar o recuo a uma memória do velho encriptado no objecto obsoleto e agora simbólico. Também o contributo do artista Stan Douglas, mencionado por Foster no ensaio, foi fundamental para o entendimento da recuperação obsoleta das formas como consequência de um tempo ‘assíncrono’ (utilizando um dos quatro termos do autor) ao nosso, ao dizer que:
‘tenho-me preocupado com utopias falhadas e tecnologias obsoletas. em grande escala, o meu conceito não é de salvar esses eventos passados mas reconsiderá-los: entender por que esses momentos utópicos não se cumpriram, que forças maiores guardaram um momento local um momento menor: e o que foi valioso lá - o que ainda pode ser útil hoje.’12 (cit. por FOSTER, 2002, p. 141)
Fica claro tanto para o artista como para o território da arte contemporânea a importância do passado para o entendimento do futuro, do objecto livre das funcionalidades ‘biológicas’ para se concentrar essencialmente no valor formal e simbólico do objecto: um presente com ‘olho e coração’ no passado e criatividade projectada num futuro.
Assim não será de todo correcto, pensar no interior da arte como puro e fechado. A arte tem o seu próprio corpo, no entanto, deixa-se contaminar pelo exterior. Aproximar a arte da vida, não de forma ingénua mas, como nos refere Perniola, fazendo com que a obra permaneça na poetização estética, ao deixar que a arte possa traduzir as questões sociais em questões artísticas e, por isso, simbólicas mas com a sua devida distância.
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[1] Apesar de conferir uma atenção especial ao cinema, propõe uma nova experiência com a obra de arte, mais próxima da realidade industrial.
[2] ‘(...) what was at issues was the formal innovation and historical significance of theses mediums’. Tradução minha.
[3] Conceito apresentado pelo filósofo Arthur Danto para se referir ao ‘fim da arte’ como início de uma arte liberal.
[4] FOSTER, Hal, 2002, p.125. ‘What comes after these ends, or perhaps (...) in lieu of them?’ Esta foi a pergunta colocada por Hal Foster para o entendimento da arte pós-moderna. Tradução minha.
[5] ‘(...) that we live in the wake not only of modernist painting and sculpture but of post-modernist deconstructions of these forms as well, in the wake not only of the prewar avant-gardes but of the postwar neo-avant-gardes as well.’
[6] Para realçar a atitude do artista Foster cita a afirmação ‘a closed world that is open to the world’ para realçar a atitude do artista contemporâneo.
[7] ‘Conceptual art saw itslef securing a higher purity for Art, so that in flowing through the channels of commodity distribution it would not only adopt any form it needed but would, by a kind of homeopathic defense, escape the effects of the market itself.’ Tradução minha.
[8] ‘(...) expressive possibilities or conventions that would articulate this field as a medium.’ Tradução minha.
[9] Conceitos enunciados por Hal Foster: ‘traumatic’, ‘spectral’, ‘nonsynchronous’, ‘incongruent’.