1.1. O novo paradigma contemporâneo: contaminações na paisagem urbana
Deparamo-nos diariamente com o espaço urbano em constante transformação, quer ao nível do planeamento urbanístico, no melhoramento de vias públicas e das redes de transporte público, quer na construção de edifícios e grandes superfícies, isto é, no melhoramento e incremento de infra-estruturas que possam melhorar e satisfazer o indivíduo social. Entenda-se assim, espaço urbano como o espaço social produzido e sujeito a transformações oriundas de relações sócio-económica e político governamentais. Escusado será dizer que estas transformações caminham a par da emergência de diversas práticas sociais despoletadas por estes novos espaços sociais, isto é, na implementação de uma diversidade de artefactos (2) que alteram a realidade cultural e visual e que potenciam diferentes formas de comunicação nos espaços urbanos. Aproximamo-nos da ideia de que as relações sociais e a vivência dos espaços urbanos/ públicos contemporâneos já não são as mesmas. Novas dinâmicas e estratégias comunicativas estão a ser criadas fruto do consumo de tecnologias/dispositivos emergentes do período pós-industrial (como o caso do uso do telemóvel) ‘contaminando’ a realidade social com repetições de gestos, hábitos e ‘movimentos mecânicos’ (3).
Segundo Vilém Flusser, a ‘omnipresença’ (4) destes dispositivos tecnológicos é uma realidade. Incutem-se na sociedade contemporânea como uma espécie de propagação sem possível retorno, apoderando-se de espaços públicos e privados, assim como, dos indivíduos que dela fazem parte. Este ‘progresso ordinário’ (5) como lhe designa o autor, é reflexo de todo um desenvolvimento tecnológico que possibilita a autonomia de meios e estratégias (comunicativas) para satisfazer o indivíduo contemporâneo, dando à sociedade uma nova configuração.
Naturalmente que esta nova configuração torna visível transformações na paisagem urbana. O espaço organiza-se pública e visualmente nas formas como a informação é transmitida em diferentes realidades culturais, sejam elas através de painéis publicitários, cartazes, revistas ou de dispositivos tecnológicos como billboards, dispositivos computacionais e telecomunicações. A realidade visual é contaminada pelo objecto new media (6) contaminando por sua vez, o espaço social e as relações nele existentes. Cresce dramaticamente o gosto e o desejo de ver e, assim, comunicar visualmente: uma nova forma cultural do período pós-moderno. São por isso notados os efeitos da tecnologia na sociedade, na forma como hoje os indivíduos se comportam, bem como na forma que a paisagem se apresenta. Segundo Marita Sturken em Pratices of Looking ‘nós olhamos as tecnologias (especialmente as tecnologias visuais) como produto de particulares contextos social e histórico. Elas emergem do cultural colectivo e desejo social.’ (7) (STURKEN, 2004, p. 116)
O espaço urbano está, assim, cada vez mais povoado e afectado por artefactos/ dispositivos informativos e comunicativos em resposta às necessidades dos indivíduos neste que é o novo paradigma - o tecnológico - das sociedades contemporâneas. Neste sentido, pretendemos na segunda parte deste capítulo reflectir sobre a proliferação e massificação do dispositivo tecnológico, mais especificamente, o telemóvel como potenciador da comunicação; e sobre a possibilidade deste dispositivo se constituir como objecto estético.
[2] Refere-se aqui, a todo um conjunto de formas/estratégias implementadas em espaços públicos com o intuito publicitário, informativo entre outros.
[3] Para o desenvolvimento da noção ‘movimentos mecânicos’ veja-se LEFREBVRE, Henri - A vida quotidiana no mundo moderno; trad. Jorge alvarez. lisboa: editora ulisseia, 1969. p.31.
Segundo Henri Lefebvre ‘o quotidiano na sua trivialidade compõem-se de repetições: gestos no trabalho e fora do trabalho, movimentos mecânicos (os das mãos e do corpo e também os das peças e dos dispositivos, rotação ou idas-e-voltas), horas, dias, semanas, meses, anos; repetições lineares e repetições cíclicas, tempo da natureza e tempo da racionalidade, etc’.
[4] Veja-se a noção ‘omnipresença’ em FLUSSER, Vilém - Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica; apres. de Arlindo Machado. Lisboa: Relógio d ́Água, 1998.
[5] FLUSSER, Vilém, 1998. p.81. O autor dizia: ‘Aquilo que hoje chamamos de sociedade contemporânea é reflexo de todo um desenvolvimento tecnológico que possibilita autonomia de meios e estratégias para satisfazer o individuo contemporâneo.’
[6] MANOVICH, Lev - The language of new media, Cambridge: The Mit Press, 2001. (introdução)
New media object é o conceito utilizado por lev Manovich para se referir a objectos culturais contemporâneos.
1.2. Massificação e contemplação do dispositivo comunicacional-telemóvel.
O período precedente à Revolução Industrial, definia-se pela modernidade e embora apenas por uma pequena minoria, o indivíduo social dominava a ‘simplicidade da máquina’ na produção final do produto, num contexto meramente fabril. O indivíduo colocava-se numa posição de trabalhador com determinadas tarefas em que a comercialização era o fim a alcançar.
Não obstante, o entendimento acerca dos meios tecnológicos e especialmente as relações entre a tecnologia e o indivíduo/trabalhador parecem tomar hoje diferentes contornos. A pós-modernidade define-se pelo consumo e, por isso, pela abrangente oferta tecnológica ao indivíduo como símbolo de exuberância, desejo, conhecimento e poder, dominante da sociedade capitalista.
Ora, se o período moderno se afirmava por uma atitude de magnificiência e ‘respeito’ sobre as ‘novas tecnologias’ daquele tempo, agora a sociedade contemporânea é sinónimo de massificação e banalização (tecnológica), em que já não é relevante a capacidade técnica entendida pela dimensão grandiosa (com finalidade produtiva), mas antes, com um sentido de deslumbramento, pela dimensão miniaturizada que é capaz de abarcar um conjunto de possibilidades técnicas que manipulam o indivíduo social e, paralelamente, potenciam a exploração de diversos meios comunicativos. Isto leva a pensar que o indivíduo vive na espectacularidade social e técnica, na qual o objecto miniaturizado do período pós-industrial ganha cada vez mais afirmação.
Verifica-se, portanto, a transformação do próprio entendimento e visão do indivíduo relativamente à relação com os meios tecnológicos. Assim, também o surgimento do dispositivo tecnológico resulta da transformação económica, cultural e visual, como resposta ao avanço da tecnologia e às necessidades humanas, o qual é, amiúde entendido como prolongamento do corpo. Tudo isto centrado no desenvolvimento do capitalismo que veio permitir a proliferação e massificação de dispositivos na sociedade. Hoje, a dificuldade em encontrar um espaço que não contenha um dispositivo é uma realidade, assim como, encontrar um momento em que o indivíduo não se deixe contaminar, controlar e modelar por um determinado dispositivo.
Entenda-se por isso, a noção de ‘dispositivo’ que se pretende abordar neste contexto. O conceito dispositivo tem origem no latim - dispositus e disponere - que significa dispor ou colocar, o qual se apresenta como um mecanismo propenso à obtenção de um determinado fim. Ora, segundo o filósofo Giorgio Agamben o dispositivo é ‘(...) qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes’ (8). (AGAMBEN, 2007, p. 31)
Contudo, o dispositivo não se resume apenas a um efeito singular sobre os comportamentos e discursos de indivíduos, ou sobre a corporização num determinado objecto. Age também, segundo um carácter colectivo e heterogéneo, isto é, pode-se constituir a partir de um mecanismo, um conjunto de equipamentos e serviços em função de um determinado objectivo: controlar uma situação, seja ela de segurança, policial, cénico, cinematográfico, entre outros. Deste modo, as raízes dos dispositivos estão inerentes ao processo evolutivo dos indivíduos, para fazer face a desejos, necessidades colectivas ou mais específicas no que diz respeito aos processos de comunicação, sempre com uma função estratégica concreta.
Como referência e produto da sociedade, o dispositivo constitui-se num mecanismo de estratégias no sentido em que parece, cada vez mais, contaminar, e influenciar o indivíduo em qualquer momento e acção, nas suas relações de poder e saber, isto é, um conjunto de práticas e mecanismos que objectivamente tencionam ‘responder’ a uma urgência para obter um efeito mais ou menos imediato.
Tendencionalmente político, o pensamento filosófico de Agamben direcciona-se para a questão da propagação e acumulação de dispositivos de que a sociedade de consumo é ‘alvo’, chamando atenção para aqueles objectos, como telemóveis, computadores, televisões, que despertam na sociedade de consumo e da comunicação um fascínio e sentimento de ‘felicidade’. O autor refere que: ‘na raíz de todos os dispositivos está um desejo de felicidade humana, demasiado humana e a apreensão como subjectivação deste desejo no interior de uma área separada constituem a potência específica do dispositivo.’ (9) (AGAMBEN, 2007, p. 37)
Segundo o filósofo italiano, no desenvolvimento do dispositivo, qualquer um possui processos de subjectivação e por isso, a generalização do uso não pode ser encarado de forma global. Um outro autor, Jacques Rancière, refere-se à subjectivação como a ‘colectivização das capacidades implementadas’ (RANCIÉRE, 2008, p. 102) em cenários onde a dissensão (10) fosse entendida como aspecto positivo das capacidades de cada um. Assim, no ensaio As Desventuras do Pensamento Crítico (2008), o filósofo francês reflecte sobre a tradição crítica através do discurso e reflexão de algumas manifestações artísticas contemporâneas, sempre num cruzamento social, económico e político.
Mas direccionemos, especificamente para aquele que é o nosso objecto de estudo nesta investigação: o dispositivo-telemóvel. Enquanto dispositivo e nova mercadoria comunicativa, este objecto altera dramaticamente as vivências social e cultural ao criar novas práticas sociais e reorganizar novas formas de relacionamento e interação nos espaços urbanos, nesta sociedade contemporânea onde se encontra exacerbada a sensibilidade. Constitui-se na corporização de sistemas informativos e comunicativos inerentes à sociedade de comunicação, como necessidade de um novo mecanismo (electrónico) na mediação das relações sociais da sociedade de massa e consumo.
Mario Perniola no ensaio Contra a Comunicação (2005) refere-se às origens da comunicação das sociedades contemporâneas com influência na cultura, política e arte, e que se dirigem ao público, aparentemente de forma democrática e transparente mas, no entanto, afirma-se pelo oposto, isto é, pelo ‘obscurantismo’ e pela aproximação a uma espécie de secretismo mas que não chega a sê-lo, pois segundo o autor, em vez de esconder e preservar uma determinada ideia, a comunicação tende a dissolver todos os conteúdos.
Neste sentido, a comunicação apresenta-se na contemporaneidade como uma espécie de problema totalitário inerente ao consumo, no sentido em que pretende conter superficialmente tudo quanto constitui a realidade social. Seria aquilo que Perniola designa de ‘desejo de protagonismo e afirmação’. (PERNIOLA, 2005, p. 20) Assim, esta aparência de uma comunicação directa à sociedade parece democrática aos olhos do filósofo italiano. No entanto, a noção de comunicação opõem-se ao do conhecimento. A própria sociedade da comunicação de massas contém falta de informação, falta de verdade pela capacidade de se tornar sedutora e manipuladora das mensagens. Pensemos, como exemplo, nos spots televisivos ou cartazes publicitários que tendem a comunicar de uma forma falaciosa com o pretexto de seduzir e iludir o indivíduo para determinada mercadoria, fazendo com que acreditemos ingenuamente.
Também como resultado da comunicação, as potencialidades oferecidas pelo telemóvel fazem surgir ou reflectir sobre duas novas questões: a primeira relacionada com o uso independente dos telemóveis que causa uma nova relação entre espaço público e espaço privado: a privatização do espaço público; a segunda com a imaterialidade potenciada pela liigação à própria ferramenta, isto é, a existência de um controlo tecnológico ‘inteligível’ sobre as acções do indivíduo no acto de comunicar.
Com a consciência da banalização deste objecto na nossa cultura, o telemóvel é detentor de grande capacidade técnica corporizando tecnologicamente todo um conjunto de conhecimento e saber que potencia a exploração das funcionalidades introduzidas em prol de processos comunicativos. Enquanto potencial da comunicação, o telemóvel é programado para despoletar determinadas funções no processo comunicativo, no processo oral e escrito, portanto, no contacto com o mundo exterior, através de interfaces e a partir da manipulação de um conjunto de imagens produzidas pelo dispositivo.
Este dispositivo mass mediático amplia, desta forma as nossas capacidades perceptivas envolvendo-nos em acções de interacção à distância através da mobilidade, permitindo transcender ‘limitações’ geográficas, ao criar mecanismos estratégicos para o alcance de um relacionamento e participação mais efectivas do dispositivo como o utilizador nesta forma de mediação comunicativa.
O telemóvel será um dos dispositivos ou, talvez, aquele com maior referência na sociedade contemporânea, da mesma forma que por exemplo, a televisão (11) era uma referência da sociedade de consumo dos anos 60. Este dispositivo é um ícone social, a corporização de uma espécie de fetiche tecnológico (12) e de mercadoria à qual a sociedade da comunicação não parece escapar. É para o meio social uma imagem reveladora de aparências, status e marca que consecutivamente altera a noção de qualidade para uma lógica de quantidade e objecto supremo - quase numa atitude Pop.
O fascínio que envolve o telemóvel, assim como outros dispositivos tecnológicos da pós-modernidade, deriva da tentativa da sociedade capitalista incutir em nós a ideia de encantamento/deslumbramento da cultura de massas com estes objectos mass mediáticos. Muito provavelmente porque a sociedade, mais do que pensar nos interesses do indivíduo, pensa nos seus interesses, em comercializar: o repensar, redesenhar, personalizar o objecto em função da reacção fascinada e por isso, do sentir posterior do indivíduo; e o indivíduo como reflexo desse ’manipulado’, falacioso do ‘sentir sócio-cultural’ do qual é dependente e inerente à sociedade.
O conceito de sensologia (13) proposto por Mario Perniola, como essa forma de sentir colectivo, vem precisamente realçar a sensibilidade da sociedade contemporânea na qual ‘(...) as pessoas se parecem qualificar com base nos seus comportamentos que com base nas suas convicções’ (PERNIOLA, 2005, p. 93) e em que ‘(...) o público tornou-se uma espécie de tábua rasa extremamente sensível e receptiva mas incapaz de reter para além do momento da recepção e da transmissão o que nela foi escrito.’ (PERNIOLA, 2005, p. 92)
Ao deixar que o indivíduo torne o seu telemóvel mais de acordo com os seus gostos, deixa que o indivíduo social o personalize e, consecutivamente, este deixa-se influenciar pelas possibilidades oferecidas, pelo uso comum do dispositivo comunicacional em função do carácter mercantil. A sociedade revela-se dependente desta forma geral ou colectiva que penetra em si e que se estende genericamente em qualquer forma de sentir.
Não obstante, esta imagem de felicidade ‘comprometida’ com o dispositivo de que a sociedade consumista nos mostra e tenta convencer, espelha um pensamento de falsidade, no sentido em que não ficamos fascinados pelo carácter formal do dispositivo mas pelas potencialidades que este nos oferece e pelo desejo contínuo de querer sempre mais.
Uma vez mais Perniola relembra que, a noção de desejo (14) é essencial para o entendimento da dinâmica da base da sociedade da comunicação de massa e por isso dos dispositivos de comunicação. Seguindo a reflexão lacaniana o autor diz que o ‘(...) desejo não está relacionado com o objecto mas com uma carência e por isso, ao contrário da necessidade é infinito e insaciável’ (PERNIOLA, 2005, p.46), isto é, parece resumir-se à impossibilidade de satisfação.
No seguimento da ideia de Perniola, também o filosofo francês Jacques Rancière, refere- se aos nossos desejos como obedecendo a uma ‘lei do mercado’ e chama, por isso, a atenção para uma espécie de ‘culpa’ que podemos vir a carregar, por um lado, porque alimentamos a ideia da negação dessa mesma culpa, isto é, a consciência da inexistência de algo (15) e, por outro, porque ‘(...) contribuimos, através do nosso próprio consumo de mercadorias, espectáculos e protestos, para o reino infame da mercantilização e da equivalência’. (RANCIÉRE, 2008, p. 89)
Uma realidade que parece que não queremos ver mas que alimentamos euforicamente por via do consumo, com uma ‘vontade de vencer a todo o custo’ que, amiúde, direcciona para aquilo que Perniola designa de actos e ‘atitudes violentas’ ou para o que Rancière designa de forma de ‘terrorismo e protesto político’(ridicularizado no espectáculo) que dão forma a esta ‘lei do mercado’. É a partir deste contexto interdisciplinar e reflexivo sobre as grandes transformações ocorridas nos últimos tempos, que o político e económico se cruzam com questões sociais, culturais e estéticas na (nova) configuração da sociedade na qual se vive.
Esta lógica da economia como força e ideia positiva para a sociedade capitalista apresenta-se ao serviço do consumo cultural e técnico, ‘contaminação aliciante’ da comercialização à qual Jacques Rancière designa de ‘besta’/’monstro’, capaz de agarrar os desejos e as capacidades dos indivíduos. Com os exemplos artísticos dados pelo autor no ensaio, parece haver uma afirmação de que a arte é indissociável da política, uma vez que também a arte é indissociável do contexto social e da vida dos indivíduos. exemplo disso é: ‘ (...) um manequim de lingerie feminina junto a um cartaz comunista (...) é uma questão de mostrar que na realidade essas coisas «formam um conjunto», que fazem parte do mesmo processo, ainda que o ignoremos, ainda que queiramos ignorá-lo’. (RANCIÉRE, 2008, p. 84)
Contudo, aquilo que se pretende é a proposta de uma resistência a esses valores de consumo do capitalismo para dar lugar a uma lógica de cariz contemplativa através da produção artística; um olhar mais atento e específico na leitura estética do objecto, já não como ícone da sociedade contemporânea comunicacional, mas para um objecto com valores simbólicos desprovidos de sentido lógico de comunicação mas que, no entanto, não signifique o desprendimento com o social.
Propõem-se uma subversão das ideias e dos actos que condicionam a lógica (universal) de qualquer dispositivo, neste caso o telemóvel, e que direccionam as operações comunicativas dos mesmos, para a criação de novas possibilidades, não necessariamente previstas, e por isso não necessariamente comunicativas. Neste sentido, de que modo se pode desactivar o uso frequente do dispositivo, que não esteja mais ligado ou comprometido a uma lógica económica e social de consumo, para dar lugar à liberdade e à consideração do carácter mais singular da linguagem artística? Será isso possível? Será que há espaço para a afirmação do valor simbólico do dispositivo comunicacional -o telemóvel- com base numa linguagem artística?
A possibilidade de priveligiar os gestos de cada indivíduo pode dar início à problematização que se apresenta. A partir de um texto intitulado Arte, Política, Inoperatividade (2008), Giorgio Agamben refere-se ao indivíduo que contempla a si próprio ao considerar essenciais os próprios gestos, a própria liberdade. Assim, a estratégia pode ser mais profunda e estar entre o indivíduo e o seu ‘gesto sentido’ e libertador contra o uso comum do dispositivo:
‘Não somente, portanto, as prisões, os manicómios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas (...) , cuja conexão com o poder é em certo modo evidente, mas também a caneta, a escrita, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telemóveis e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos (...)’. (AGAMBEN, 2007, p. 31)
Deste modo, a ‘operação inoperativa’ (16) proposta por Agamben poderá ser a via para enfatizar a importância dos gestos e sentidos de cada indivíduo, tornando inoperativas as acções sociais e económicas. Pode constituir-se como uma das formas possíveis para uma utilização artística, numa forma de relação de poder ao nível dos sentidos e do agir. Não muito distante do discurso do autor, a intensidade do sentido e o que se apresenta à imaginação constitui no indivíduo ele próprio o valor. Adquire aquilo que Perniola designa de economia/captação dos valores simbólicos da sociedade pós-industrial, que envolva todos os comportamentos, atitudes e ‘habitus’.
Desta forma, a arte afirma-se de forma peculiar no acto de comunicar e por isso, na resistência ao poder evidente quer seja económico como comunicacional, isto é, na eliminação do carácter comunicacional e utilitário em função da exposição do valor simbólico. A estratégia ou a possível eficácia pode estar na forma de ‘discrição’ à qual Perniola refere no ensaio Contra a Comunicação (2005) ou mesmo na ‘sombra’, em um outro ensaio do autor -El Arte y Su Sombra (2002) - que constitui um afastamento necessário para com o aliciamento da mercadoria e que retira à arte a transparência que pode haver como resultado da comunicação:
‘(...) alternativa aos efeitos da comunicação num sentimento estético das coisas que não seja muito distante das necessidades e das expectativas reais dos indivíduos, mas que também não seja vítima do ganho imediato e do sucesso a qualquer preço’. (PERNIOLA, 2005)
É a possibilidade da estética se situar entre as necessidades dos indivíduos e o valor simbólico, permitindo assim, relacionar a acção com a vida material, no sentido em que o ser humano se revela continuamente necessitado e, por isso, ‘os aspectos materiais da existência e o desejo de reconhecimento desempenham um papel essencial’. (PERNIOLA, 2005, p. 67)
Deste modo, na amplitude da abordagem sobre o dispositivo, não se pretende que o problema do mesmo se reduza ao seu bom uso mas pelo contrário, segue-se a ideia de uma linguagem poética e simbólica onde seja possível devolver ao indivíduo a capacidade gestual absoluta e integral em detrimento de gestos controlados e comportamentos manipulados pelos dispositivos comunicacionais, como o caso do telemóvel que coloca o indivíduo perante situações abstractas e manipuladoras em favor da velocidade do tempo.
Enquanto que a ‘economia do tempo’ se afirma fulgurante na sociedade capitalista, como resultado de um desejo e interesse fugaz e excessivo no consumo, o tempo (simbólico) pretendido e entendido no campo da arte, diz respeito ao ‘sentir’ de carácter tendencionalmente contemplativo como consequência do ‘prazer estético’ (17), isto é, a impossibilidade de se definir um tempo a um bem simbólico. Este deveria ser um meio estratégico para conferir ao carácter estético um poder autónomo que causaria efeito não só na arte como na vida.
A vida é constituída por bens simbólicos que, por sua vez, fazem os indivíduos sociais, em determinado momento, vincularem-se a uma situação ou objecto preciso. Um bem simbólico é parte essencial da vida material e social dos indivíduos ocupando, por isso, um importante lugar e muito peculiar também na arte, através da importância e do contributo dos procedimentos críticos como formas de reflexão para o desenvolvimento artístico.
Deste modo, pensa-se que também as potencialidades tecnológicas podem fazer parte da essência poética da arte e do próprio dispositivo. O telemóvel pode-se constituir como mais uma ferramenta crítica e artística na ‘destruição’ da ideia de dispositivo comunicacional, provando a capacidade de transformação do próprio objecto. Este parece ser mais um dispositivo promissor para a criação poética e da afirmação de uma ordem simbólica em inúmeros campos, especialmente naqueles onde a comunicação é factor preponderante. A arte será possivelmente um deles.
[7] STURKEN, Marita - Practices of Looking: an introduction to visual culture. New York: Oxford University Press, 2004. p.116: ‘We look at technologies (specifically visual technologies) as the products of particular social and historical contexts.’ Tradução minha.
[8] Agamben utiliza a noção dispositivo a partir da apropriação do pensamento de Foucault: ‘en donnant une généralité encore plus grande à la classe déjà très vaste des dispositifs de Foucault, j’appelle dispositif tout ce qui a, d’une manière ou d’une autre, la capacité de capturer, d’orienter, de déterminer, d’intercepter, de modeler, de contrôler et d’assurer les gestes, les conduites, les opinions et les discours des êtres vivants’. Tradução minha.
[9] ‘(...) désir de bonheur humain, trop humain et la saisie comme la subectivation de ce désir à l’intérieur d’une sphère séparée constituent la puissance spécifique du dispositif’. Tradução minha.
[10] RANCIÉRE, Jacques - ‘As desventuras do Pensamento Crítico’. in Política/Politics, Edição/ Copy-editing: Fundação de Serralves, 2008, p.102. O conceito de dissensão é utilizado por Jacques Rancière para designar a diversidade de opiniões, isto é, as diversas formas de se construir a realidade sobre a capacidade de ver, compreender e discutir de cada um, pois para o autor ‘a inteligência colectiva da emancipação não é a inteligência de um processo global de submissão’.
[11] A televisão caracteriza-se como um mass media emergente dos anos 60, um dispositivo que comunica e interfere de tal forma nos indivíduos, objectos que acaba por transformá-los em ícones.
[12] A noção de fetiche resulta da admiração perante o avanço tecnológico na sociedade contemporânea aliado à segurança e comunicação. O telemóvel é um objecto exemplificativo do fetiche mundial devido à propagação deste dispositivo e a admiração em qualquer parte do mundo, que valoriza a comunicação como resultado da mediação tecnológica em detrimento da tradicional-comunicação verbal e presencial.
[13] PERNIOLA, Mario, 2005. pp.12-13.
[14] PERNIOLA, Mario, 2005. A noção de desejo apresenta-se no ensaio de Mario Perniola no seguimento do seu pensamento comparativo da comunicação com o desejo sexual, na impossibilidade de se satisfazer.
[15] Jacques Rancière refere-se ainda, a duas formas de ignorância como parte da sociedade contemporânea de consumo: a incapacidade de compreender e a vontade de ignorar. O autor diz ainda, que a ignorância é uma falta de conhecimento e uma vontade de a negar. Destaca por isso, o sentimento de culpa no ‘coração da negação’.
[16] Inoperatividade é o conceito utilizado por Giorgio Agamben para desmontar determinada acção, isto é, o autor não pretende uma atitude passiva, mas antes, uma acção que contrarie e que torne inoperativa as acções ou operações tanto económicas como sociais.
[17] PERNIOLA, Mario, 2005. p. 62.